Uma emergência sanitária pode justificar uma visão diferente do que, num contexto mais amplo, pode ser considerado ético ou não, mas jamais justifica a realização de estudos antiéticos.
Em nossa experiência, durante este momento crítico, temos observado estudos com propostas sem base em termos de antecedentes, sejam através de evidências científicas ou mesmo anedóticas. Muitas pesquisas são baseadas somente na iniciativa de pessoas bem intencionadas, mas com pouca ou nenhuma experiência científica, ou até em pressões políticas que não raramente ignoram ou negam a boa ciência.
Um estudo que não é baseado em uma metodologia cientificamente aceitável pode levar a pelo menos duas consequências antiéticas: submeter os participantes da pesquisa a riscos desnecessários e fornecer respostas equivocadas que podem confundir e colocar obstáculos para que o conhecimento seja ampliado. Claramente isto caracteriza dano individual e coletivo.
Os órgãos de revisão ética estão enfrentando um enorme desafio durante a pandemia de Covid-19. Aprovar rapidamente estudos nem sempre tem sido fácil neste contexto. Eliminar obstáculos burocráticos e decidir, baseando-se em uma visão mais geral da relação risco/benefício, tem funcionado bem. Mas talvez não sejam suficientes para que, no futuro, se perceba que algo que foi feito não deveria ter sido feito do modo como foi. Analisar caso a caso, evitando algoritmos ou checklists para detectar inadequações de ordem ética é imperioso para aqueles que estão incumbidos da revisão ética de novas propostas relacionadas com a Covid-19.
Estamos enfrentando uma doença sobre a qual ainda não se sabe muito. Novas evidências sobre novos tratamentos surgem a cada dia e deste modo uma análise ética que se baseou em evidência disponível (e aceita) em um determinado momento, pode não ser válida em um futuro breve.
Nesta situação, cabe aos órgãos de revisão ética, não só aprovar um estudo, mas acompanhar seus desfechos. Exigir análises interinas mais frequentes de estudos clínicos para novas abordagens terapêuticas, bem como notificações imediatas de eventos adversos sérios é recomendável para mitigar o risco de que estudos que vierem a se mostrar inadequados possam ser suspensos o mais rapidamente possível.
A relevância de um estudo clínico e o potencial de que possa fornecer respostas úteis, pode justificar uma maneira diferente de conduzir uma revisão ética, mas não pode ignorar que má ciência é sempre antiética.
Autor:
Prof. Dr. Sergio Surugi de Siqueira
Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR4
Professor do Curso de Farmácia da PUCPR
Membro do Comitê de ética em Pesquisa da PUCPR
Membro Titular da Comissão Nacional de ética em Pesquisa.