Prof. Dr. José Antonio Tesser Poloni
Escola de Saúde Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS
A pandemia pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19, tem proporcionado algo nunca visto, ao menos, na escala em que estamos observando: a construção de conhecimento sobre uma condição clínica extremamente eficaz em propagação e com alta taxa de mortalidade, com as informações sendo acompanhadas com expectativa por toda população mundial, em tempo real. Uma quantidade enorme de estudos tem sido publicada nos últimos meses, tentando colocar luz sobre esta doença que ainda é, em grande parte, misteriosa quanto a seus mecanismos e quanto aos meios de intervenção eficazes para garantir a cura (e menor número possível de sequelas associadas) dos pacientes infectados.
Uma parte importante do processo patológico é relativa aos efeitos renais que a COVID-19 pode apresentar. Insuficiência renal aguda (IRA) é uma importante complicação da COVID-19, ocorrendo em 0,5-7% dos casos e em 2,9-23% dos pacientes em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) [1-3]. Os potenciais mecanismos de dano renal nesses pacientes podem ser didaticamente classificadosem: (i) dano estimulado por citocinas, (ii) crosstalk de órgãos e (iii) efeitos sistêmicos. Esses mecanismos estão profundamente interconectados e têm implicações importantes para a terapia [4].
A ocorrência de síndrome de liberação de citocinas (SLC)na COVID-19 está documentada desde os primeiros relatos desta doença [5,6]. Em pacientes com SLC, a IRA pode ocorrer como resultado de inflamação intra-renal, aumento da permeabilidade vascular, depleção de volume e cardiomiopatia, que podem levar à síndrome cardiorrenal tipo 1. A SLC inclui lesão endotelial sistêmica, que se manifesta clinicamente como derrames pleurais, edema, hipertensão abdominal, depleção de líquido intravascular e hipotensão. Achados recentes confirmaram a estreita relação entre dano alveolar e tubular, o eixo pulmão-rim, na síndrome respiratória aguda (SRA) [7].
Até o momento não está esclarecido se a IRA na COVID-19 é causada por efeitos citopáticos induzidos pelo SARS-CoV-2 ou por uma resposta inflamatória sistêmica decorrente de uma “tempestade” de citocinas [8]. Já foi demonstrada a presença do novo coronavírus tanto em podócitos como em células dos túbulos proximais renais [9]. Notavelmente, podócitos são particularmente vulneráveis a ataques bacterianos e virais, e lesão nos podócitos induz facilmente à proteinúria intensa [8,10]. Dados recentes demonstraram que 43,9% dos pacientes infectados com o SARS-CoV-2, especialmente aqueles com IRA, tem proteinúria [8,11]. Além disso, o SARS-CoV-2 foi detectado nas amostras de urina de pacientes com COVID-19 severa [8,12]. Foi também demostrado que a entrada do SARS-Cov-2 na circulação sistêmica é chave para o processo que leva à IRA [9].
De acordo com a literatura, o tempo decorrido entre a detecção do SARS-Cov-2 no sangue e a ocorrência de IRA foi de aproximadamente 7 dias [9,13]. Os efeitos citopáticos do SARS-CoV-2 nos podócitos e nas células dos túbulos proximais podem causar IRA nos pacientes com COVID-19, especialmente em pacientes com presença do SARS-CoV-2 nas amostras de sangue. É necessário estar atento ao monitoramento precoce da função renal eao manuseio das amostras de urina dos pacientes com COVID19 e que estejam com IRA para prevenir infecções acidentais [9].
Em recente publicação de Hernandez-Arroyo et al. (2020) [14], observando os achados do sedimento urinário de pacientes com IRA associada à COVID-19,cilindros granulosos foram observados em 85% dos pacientes avaliados, cilindros céreos em 50% dos pacientes e células epiteliais tubulares renais em 20% dos pacientes. O simples olhar para estes achados sugere a presença de IRA causada por agressão tubular, uma vez que células epiteliais tubulares renais e cilindros granulosos são marcadores conhecidos e bem estabelecidos de necrose tubular aguda que podem ser observados inclusive antes da elevação dos níveis de creatinina sérica [15]. Os cilindros céreos são um achado associado à perda de função renal, não propriamente associado ao dano tubular. Tentar entender os mecanismos que levam a esta agressão tubular em pacientes com IRA associada à COVID-19 é com certeza um passo relevante para o aprendizado dos processos que levam à perda de função renal nestes pacientes.
Considerando os pacientes com COVID-19 que apresentam a forma grave da doença e evoluem rapidamente com piora do quadro de saúde e desenvolvimento de IRA, há a necessidade desta condição ser identificada com brevidade. Para isso, as análises das amostras de urina através da tira reativa e microscopia do sedimento urinário possibilitam a identificação de marcadores de dano tubular/glomerular em associação aos marcadores de perda de função renal (proteinúria, cilindros granulosos, cilindros céreos, células epiteliais tubulares renais). A Uroanálise (associada a outros marcadores laboratoriais) aparece como um recurso útil no diagnóstico e monitoramento desta importante condição clínica associada à COVID-19.