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Relato de Doença Falciforme

Paciente masculino, 50 anos, portador de doença falciforme e outras comorbidades (gamopatia monoclonal, diabetes tipo 2, hipotireoidismo, disfunções gastrointestinais, baixo peso corporal, Hb < 5,0).

O laboratório da agência transfusional iniciou os testes de compatibilidade para obter concentrados de hemácias para transfusão, primeira alternativa terapêutica adotada e também se iniciava o uso da hidroxiuréia.

Durante o preparo transfusional foram obtidos resultados positivos de coombs direto e coombs indireto e os testes com os concentrados de hemácias se apresentavam incompatíveis. Também foram obtidos resultados discrepantes na tipagem sanguíneas ABO/Rh e impossibilidade de realização da fenotipagem eritrocitária.

Os testes sugeriam que os resultados obtidos poderiam ser falsos e que as aglutinações observadas eram decorrentes da acentuada falcização durante a crise falcêmica e do empilhamento de hemácias (Rouleaux) promovido pelo excesso de proteínas decorrente da gamopatia monoclonal do paciente.  Estas condições podem promover reações falso-positivas em testes de coluna (testes de aglutinação em colunas preenchidas por Gel de Sephadex ou Poliacrilamida) realizados pelo laboratório de prova cruzada da agência transfusional onde foi testado.

Os estudos imunohematológicos e hematológicos subsequentes comprovaram que havia uma intensa falcização eritrocitária in vivo, percebida ao microscópio na análise do sangue total a fresco e este fato causava a falsa positividade do teste de coombs direto pela metodologia de coluna.

Em seguida foram analisadas lâminas microscópicas a fresco com hemácias diluídas em soluções isotônicas ricas de proteínas (albumina bovina a 22% e meio macromolecular) e também foram analisadas as lâminas de esfregaço sanguíneo do hemograma (corados pelo Giemsa) onde se observou um intenso empilhamento eritrocitário (Rouleaux) que promovia os resultados falso-positivos dos testes de coombs indireto.

Foi afastada a possibilidade de existirem anticorpos irregulares anti-eritrocitários na amostra devido à “monotonia” dos resultados de hemaglutinação obtidos (todos os testes apresentavam reação fraca de uma cruz [1+] e estas reações desapareceram após a diluição 1:2 do soro do paciente salina isotônica).

Isso comprovou que os resultados positivos dos testes imunohematológicos eram pseudo-hemaglutinações, sem o envolvimento de anticorpos potencialmente promotores de hemólise.  Além das células falcizadas, o esfregaço sanguíneo também demonstrava alterações ão morfológicas típicas (eritroblástos, células em alvo, dacriócitos).

A Hemoglobina S (Hb S) é uma hemoglobinopatia determinada por hereditariedade, decorrente de uma mutação GAG->GTG, no gene da globina beta da hemoglobina.

 

A herança desta mutação pode ser do tipo SS (homozigótica) ou AS (heterozigótica, traço falcêmico). Em um ambiente de baixa oxigenação (hipóxia), a hemoglobina S se polimeriza e se torna insolúvel, formando fibras rígidas dentro das hemácias e estas adquirem uma forma alongada e de baixa plasticidade, se semelhando a uma foice, de onde deriva a denominação “falciforme” empregada em diversos países de língua latina.

Na crise falcêmica as hemácias “falcizadas” se agregam e obstruem pequenos vasos sanguíneos, levando à diminuição do fluxo sanguíneo e menor suprimento de sangue local. Segue-se uma intensificação da hipóxia e maior oclusão vascular, crise dolorosa, hemólise intravascular e toda a série de eventos que contribuem para os sintomas e complicações associados à anemia falciforme, incluindo, danos vasculares e, inflamação.

 

A polimerização é o resultado de reações químicas intermoleculares onde grupos funcionais presentes nos monômeros se ligam fortemente, formando longas sequências de unidades repetitivas. Essas ligações sucessivas de monômeros causam aumento de tamanho da cadeia polimérica e formação de estruturas firmes e rígidas de hemoglobina S.

 

Um dos principais recursos terapêuticos para tratar o paciente durante a crise falcêmica é a transfusão de hemácias normais (c/ Hb AA) para reduzir a concentração das células portadoras da HbS, melhorar a oxigenação no ambiente vascular e, consequentemente, tornar o ambiente menos propício à polimerização das cadeias de HbS. O uso de substâncias capazes provocar o surgimento de outros tipos de hemoglobinas não polimerizáveis pela hipóxia, como o caso da Hidroxiuréia, favorece a formação de hemácias com elevadas concentrações hemoglobina fetal, que possui maior capacidade de oxigenação do que as demais hemoglobinas.

Imagem 1.  Intensa falcização espontânea. Amostra de sangue a fresco, meio isotônico. Microscopia óptica. Aumento de 400x.

Imagem 2. Roleaux eritrocitário. Amostra de sangue a fresco. Microscopia óptica. Aumento de 400x com zoom do celular.

Imagem 3. Hemácias falcizadas (setas vermelhas), roleaux eritrocitário (seta verde) e eritroblasto (seta preta). Amostra de sangue corada com Giemsa. Microscopia óptica. Aumento de 1000x.

 

Autor: Dr Claudio José de Freitas Brandão – Coordenador Geral da Agência Transfusional do Hospital Geral Roberto Santos – BA.